“A vida é um conjunto de forças que resistem à morte” – Bichat

INTRODUÇÃO:

Os acidentes de trânsito representam importante problema mundial pelos índices de mortalidade. Estatísticas oficiais mostram que mais de um milhão de pessoas por ano, em todo o mundo morrem por envolvimento em acidentes de trânsito. Acrescido ao número de mortes, os acidentes deixam entre 20 milhões e 50 milhões de pessoas feridas.

“As necessidades humanas são inatas e universais; no entanto, elas podem ser influenciadas, eliminadas ou enfraquecidas pelas condições externas, atribuindo, assim, importância fundamental aos suportes presentes no ambiente para a sua satisfação.” (Maslow)

A PSICANÁLISE E O COMPLEXO DE ÉDIPO NO TRÂNSITO:

O complexo de Édipo está entre os conceitos fundamentais da psicanálise. Sua importância é tanto que dados indicam que entre 1910 e março de 2005 foram catalogados 1266 trabalhos – grande parte destes artigos em revistas científicas. Esse assunto é de grande relevância para a própria estruturação da psicanálise – foi inspirado no famoso mito grego de Édipo, que encontramos a primeira intersecção entre trânsito e psicanálise, pois é uma situação de conflito no trânsito que desencadeia o processo de Édipo matar seu pai.

Diante do mito, é importante analisar que os conflitos de trânsito já podiam ser violentos na Grécia antiga. Mesmo considerando que Édipo seja um ser mitológico é muito provável que o conflito de trânsito seja a parte real do mito, algo que fazia parte da realidade daquela cultura. Assim, não é novidade do mundo pós-revolução industrial que exista violência no trânsito, o que há de mais novo, é uma grande proporção de indústrias automobilísticas e suas concorrências acirradas -, isto ressalta o quão instigante e sedutor é o trabalho do marketing em prol do consumo e do consumido, o sujeito.

DA FINITUDE:

Quando se analisa a questão da finitude através da teoria psicanalítica, a associação com o conceito de pulsão de morte é inevitável.

Na contemporaneidade, o trânsito pode realizar a busca de algum desejo inconsciente. Violando as leis de trânsito, logo, se ultrapassam regras. E nessa incessante repetição, há uma enorme satisfação que é levada ao gozo. O sujeito tende a viver perigosamente – e sempre que é levado pelo prazer da velocidade – estará suspenso entre a vida e à morte.

O TRÁGICO CENÁRIO DE ACIDENTES AUTOMOBILÍSTICOS:

Estudiosos preocupados com o trágico cenário de acidentes automobilísticos têm produzido conhecimento científico sobre o comportamento do homem no trânsito. Observa-se, também, que independe do gênero, visto que o sexo feminino está cada vez mais atuante em todos os segmentos, havendo assim maior necessidade de estar no trânsito. No entanto, a probabilidade de acidentes automobilísticos com o sexo masculino é muito mais frequente e com estimativas de números bem maiores. Pode-se dizer que a ocorrência desse cenário se intensifica, pois afeta aspectos da personalidade humana.

O incessante interesse por investigar e estudar o assunto – nasceu de uma trágica perda de um ente querido – em um acidente automobilístico. A partir desta vivência, a curiosidade por desvendar o mistério, que se passa na psique de indivíduos velozes fez com que eu buscasse na filosofia, na psicanálise, na religião, alguns questionamentos e, por conseguinte, restaram-me algumas respostas.

Acidente automobilístico

Recentemente, (“o ator, Paul Walker, de Velozes e Furiosos. (Morre em acidente de carro nos EUA). Fonte: Do G1, em São Paulo”. Aqui cabe a frase, que é irônica nesse caso: “A vida imita a arte”.)

O COMPORTAMENTO DO SUJEITO VELOZ

É possível compreender essa necessidade que leva ao processo de repetição com a velocidade – causando assim, tantos acidentes automobilísticos? O que ocorre com o sujeito veloz?

A maneira como o sujeito dirige pode ser vista como uma representação de seu funcionamento psíquico. Para além de suas escolhas, crenças e costumes. Estão presentes também situações reprimidas e camufladas da personalidade do sujeito que, geralmente, são provenientes da infância. A “impotência” diante da vida e seus dissabores são compensados pela “potência” dos motores; ou, na mesma direção, o “poder” de dirigir um carro potente – exteriorizado por meio do prazer da velocidade de um carro com todas as tecnologias de ponta.

No presente caso, os veículos representam a extensão do próprio corpo e/ou da própria existência. Quando acorrem os acidentes automobilísticos, o veículo passa a ser o objeto central do sintoma – sendo que em um primeiro momento todo o discurso do acidente pode ser o veículo o qual o sujeito conduzia. Geralmente, o discurso começa a partir do veículo. Mas sabemos que pertinentemente as indústrias automobilísticas sabem se basear no conhecimento cada vez mais sofisticado que se tem do desejo humano. Muito bem elaborado e estudado por ferramentas do marketing. As indústrias automobilísticas sabem que CARROS são como que projeções do EU.

Analisando este panorama enquanto estudiosa da Psicanálise, percebo a demanda geradora do mal-estar da civilização na atualidade; sendo os acidentes automobilísticos uma dessas consequências. Vale ressaltar que diante de tantas novas tecnologias – o ser humano continua sempre em falta. E por existir essa falta, que veementemente estamos sempre em busca. Sabemos por Freud, que somos seres faltantes e que, na maior parte da vida estamos aprisionados nessa pele humana e, por essa razão, somos angústia e desejo, somos fobia e castração.

A Psicanálise nos invoca para as formas de linguagem com intuito de alcançar o inconsciente e as pulsões beneficiadas pelo desejo. A contribuição da Psicanálise na compreensão dos acidentes automobilísticos tem como objetivo discutir os aspectos da personalidade que permeiam a ocorrência de acidentes à luz da Psicanálise. Para essa questão encontram-se conceitos como: pulsão de morte e de compulsão à repetição.

A pulsão de morte é um conceito introduzido por Freud em 1920, na sua obra Além do Princípio do Prazer. Trata-se de um dos conceitos mais discutidos da teoria psicanalítica. Sob esta reflexão, é possível analisar que há um longo caminho a ser percorrido em direção a uma mudança de mentalidade que contemple o olhar que envolve a singularidade humana. Além disso, está em evidência uma correlação entre os níveis de raiva dirigidos a si próprio e as variáveis idades do sujeito – é uma fúria sádica contra ele mesmo. O desejo de viver perigosamente é sem dúvida uma droga potente. A pulsão impõe à repetição que é produto da pulsão de morte que fixa o sujeito em seus pontos de gozo. Mas, isso requer aprofundamento da questão pulsional, para que tenhamos uma melhor compreensão da repetição do sujeito. Pode-se dizer que essa repetição se mostra bastante intrigante, sendo imprescindível estarmos atentos as especificidades para que possamos ouvir suas vicissitudes em cada sujeito.

“Uma pulsão é um impulso, inerente à vida orgânica, a restaurar um estado anterior de coisas, impulso que a entidade viva foi obrigada a abandonar sob pressão de forças perturbadoras externas” – Freud

“O desejo por ser peculiar ao sujeito é por excelência narcisista, podendo desencadear na extensão do pensamento e da consciência representantes egocêntricos. Da mesma forma, que o sonho é do sonhador, o desejo é do desejante. Afinal, o sonho seria, então, a realização alucinada de um desejo? E o trânsito não seria, então, a realização veloz desse desejo?”

Existe um enigma que não se explica após o fim do sujeito, pois, sabemos que o mesmo, não estará presente para ser posto em análise. A morte dá condição para existência do enigma.

CONCLUSÃO:

O que se observa à luz da psicanálise é uma impossibilidade de que estes jovens motoristas exibam comportamentos seguros no trânsito. Suas vivências no trânsito foram geralmente prazerosas, eles agiram pelo princípio do prazer, uma atuação praticamente soberana do Id. Eles não estão de fato interpelados (castrados) por uma lei, por algo que represente uma impossibilidade do prazer incondicional e imediato. Por isso, os desejos e a compulsão a repetição são privilegiados sempre.

Por fim, o desconhecimento da sociedade frente às mazelas invisíveis motivadas pela angústia – acomodam os familiares das vítimas de trânsito (direta ou indiretamente) a não buscarem apoio psicológico como também, de não perceberem as consequências que os acidentes podem produzir para além das sequelas físicas. Finalizamos com a pergunta inicial do título deste artigo: “Acidente Automobilístico: Suicídio Inconsciente ou Ironia do Destino?” Estas breves linhas não encerram o assunto, ao contrário, permitem estimulá-los. Que possam os leitores refletir e opinar.

REFERÊNCIAS:

Freud, S. (1920). Além do princípio do prazer. Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago

Código de Trânsito Brasileiro (C.T.B.). Lei 9.503, de 23/09/97.

Organização Mundial da Saúde (2003). Epidemias mundiales desatendidas: tres amenazas crecientes. Informe sobre la salud en el mundo 2003 – forjemos el futuro. Disponível em www.who.org.

Psic: Revista da Vetor Editora
versão impressa ISSN 1676-7314
Psic v.8 n.1 São Paulo