Abuso Sexual. Um trauma que pode tornar-se um fantasma por toda vida.

“Penso nos frutos que ficam maduros rápido demais, e saborosos, quando o bico de um pássaro os feriu,
e na maturidade precoce de um fruto bichado.”

S. Ferenczi

A questão dos maus-tratos na infância, dentre eles o abuso sexual, em função da frequência de casos e das consequências negativas tanto para o sujeito vitimado quanto para a sua família, foi considerada como um grave problema de saúde pública (OMS, 1999). Assim sendo, o abuso sexual é uma temática complexa que perpassa diversas dimensões, desde situações específicas, envolvendo perpetradores e vítimas, a questões familiares, sociais e culturais (Amazarray & Koller, 1998; Avery, Hutchinson, & Whitaker, 2002). Além disso, há consequências sérias que são resultantes das experiências traumáticas de tal evento e que afetam diversos aspectos do desenvolvimento cognitivo e emocional de crianças e adolescentes vítimas de tal violência (Pfeiffer & Salvagni, 2005; Prado & Féres-Carneiro, 2005).

As consequências dos maus-tratos são devastadoras, ocasionando sequelas físicas e psicológicas, afetando, também, o desenvolvimento cognitivo das vítimas (Benetti, 2002). Além disso, os efeitos do abuso e a respectiva severidade variam de acordo com alguns pontos, tais como a idade da vítima, a duração do abuso, o grau de violência, a diferença de idade entre perpetrador e vítima, o relacionamento entre eles, a ausência ou não de figuras parentais protetoras e, finalmente, o grau do segredo e de ameaças que a vítima sofreu (Amazarray & Koller, 1998). Neste sentido, em 1985, Finkelhor e Browne (1985) organizaram um modelo compreensivo das consequências e do impacto do abuso sexual a partir de fatores característicos das experiências traumáticas. Estes fatores determinantes definem o que os autores denominaram a dinâmica traumática e são baseados nas experiências de sexualidade traumática, traição, submissão ao poder e estigma. Ainda que estes elementos possam estar presentes na experiência de diversas situações traumáticas, a conjunção dos fatores nas situações de abuso sexual determina uma especificidade do abuso sexual no impacto do desenvolvimento geral das vítimas. As experiências de sexualidade traumática dizem respeito aos sentimentos e às atitudes resultantes das vivências sexuais inapropriadas ao momento evolutivo do sujeito e das relações interpessoais disfuncionais que se estabelecem com o abusador. Portanto, dependendo do tipo da experiência sexual vivida pela criança, seja colocada numa posição passiva, seja envolvida em sedução e prazer, além da força e do poder exercidos pelo abusador, serão determinadas diferentes consequências no desenvolvimento emocional e cognitivo do abusado.

Muitas vezes, o senso de traição ocorre igualmente em relação a outros adultos, em quem a criança confia e que não conseguem exercer uma ação protetora, tal como a mãe ou irmãos mais velhos. Assim, a experiência de submissão ao poder do adulto gera uma experiência ainda mais traumática e invasiva, pois a vítima não consegue visualizar meios de reverter à situação do abuso na qual está envolvida. Por último, há o estigma gerado por ter sido vítima e as crenças de por qual razão o abusador a escolheu, além das percepções dos demais acerca do papel da criança no evento. Finkelhor e Browne (1985) colocam estes fatores como critérios que podem ser utilizados para o diagnóstico do impacto do abuso no desenvolvimento infantil e adolescente, já que fornecem dimensões de análise complementares do fenômeno.

Um caso de ficção, mas que acontece com frequência. Na novela Passione – que foi exibida pela Rede Globo de Televisão em 2010 – “vimos” um caso que nos revela situações vivenciadas por crianças, adolescentes deixando traumas os quais podem acompanhá-los por toda vida.

O personagem depois de muito resistir, consegue resolver o que o incomodava, quando se determina fazer terapia.

Gerson (Marcello Antony) vivia no computador vidrado na tela, o piloto acabou com seu casamento por causa do vício e sofreu cada vez mais com a repulsa que sentia por si mesmo.

Em consulta com o doutor Flávio Gikovate, ele diz que não aguenta mais guardar o segredo e que precisa “tirar isso de dentro de mim, senão vou ficar louco”. Angustiado, Gerson começa o desabafo contando que foi iniciado no sexo ainda muito cedo, possivelmente por ter sido abusado pela empregada, quando criança. Ainda adolescente, ele passou a frequentar inferninhos, locais muito pobres e sujos, e aquilo lhe causava um fascínio. Depois, descobriu as revistas proibidas, com imagens explícitas que o excitavam e causavam prazer por ser proibido. Passou a assistir a homossexuais fazendo sexo em banheiros públicos, sentindo excitação com o cheiro fétido do local. Porém, o rumo do vício mudou numa noite em que ele pagou para uma mulher muito maquiada, volumosa e de seios grandes para fazer sexo e foram para um bairro deserto. A polícia chegou e o achacou, roubando seus documentos e causando muito medo.

A partir daí, Gerson ficou acuado para sair de casa e descobriu uma forma de fazê-lo pelo computador. Entrou em muitos sites, que as pessoas contavam histórias e erotizavam explicitamente. No dia em que Diana (a esposa) descobriu o segredo, o piloto revela que “quando ela começou a gritar e eu tapei à sua boca, eu senti um prazer tão perverso com aquela situação. (Há muito tempo que eu não sentia desejo por ela, mas, naquela hora, eu quase a violentei”).

Por fim, ele desabafou que “eu tenho muita vergonha. Eu não sei como parar com isso. Eu quero ser um cara limpo. Não quero mais me excitar com isso, não quero mais ter vergonha de mim. Eu quero poder amar de verdade, não quero enganar mais ninguém”. O drama do personagem Gerson é diagnosticado pelo doutor Gikovate como “algo que povoa o pensamento de muitos outros homens, mas, por forças de violência e de abuso, ele vincula a temas vulgares, sujos. Não há nada do que se envergonhar”.

Como o próprio médico observa, a excitação de Gerson por sexo violento e atividades atípicas só era vista pelo piloto como algo sujo e vulgar por ele vincular com o abuso que sofreu no passado. Após conseguir contar o que esconde, parece que ele tira um peso dos ombros e se livra do que tanto o perturbava.

“Gerson não era gay, muito menos pedófilo. Ele precisava curar um problema que o impedia de ser feliz nos relacionamentos”.

É um caso da ficção, mas mostra como isso acontece e deixa traumas violentos, fazendo com que essas pessoas não sintam prazer numa relação sexual saudável. Podendo desencadear culpa, repulsa, ódio…

Freud em 1896, não usou termos como abuso (missbrauch), estupro (vergewaltigung), ataque (angriff), entre outros, para se referir às crianças que ele supunha terem sido seduzidas sexualmente por um adulto. Preferiu substituí-los por sedução (verführung), o que implicava, na visão de alguns autores, alguma forma de participação de um outro.

O trabalho de análise/terapia é fundamental. Realizado na clínica mostra que apesar da questão fundamental, o abuso, é importante preservar a singularidade de cada um, permitindo assim, que o processo terapeutico acompanhe o ritmo do analisando.